nicotina

o fumo das coisas

quinta-feira, outubro 27, 2005

O Dia do Senhor

Aos domingos sinto uma pesada nostalgia lacrimosa que me pesa os olhos, escorrendo em lágrimas na almofada e embalando os sonhos nocturnos. Como se estivesse irremediavelmente só, uno com a dimensão perpétua do tempo. Só a música me tira da melancolia e me entra no corpo colocando a esperança no coração. Talvez saiba porque me sinto assim, com a tristeza estampada num murmuro de olhar vago pela janela cuja paisagem é deserta, todos os domingos à noite. Deve ser pela intensidade dramática com que vivo cada pessoa que me abre as portas da empatia, esvaziando maços de tabaco maquinalmente numa existência de êxtase e de sonho. Mas esta tristeza é alegre, puxa-me para os domínios do sonho e dos lençóis e do cobertor quente, abre-me um livro que nunca tive vontade de ler e que faz todo o sentido, abre me o sorriso enquanto os olhos se encerram num suspiro ténue de memórias e de futuro.

Não passa de um momento, mas de um momento que me obriga a sentir o ar frio deste Inverno com mais força, como se eu fosse também parte da estação. Entorno uma bebida para o copo manchado e sinto o calor do sabor adocicado a corroer-me lentamente a circulação sanguínea de forma a poder acalmar o olhar, ingerir o líquido proibido como uma missão espacial à consciência, anjos e demónios numa orgia sabática, e a música puxa-me para além disso, vai-me buscar lá abaixo e torna-me no dono do meu mundo, encena em mim a confiança e queimo outro cigarro puxando o fumo com força, expelindo-o para o ar, a janela aberta convida-me a experimentar o frio, a paisagem está deserta.

Um instante que me vai buscar os antigos números da lista telefónica, rostos antigos que passaram e deixaram marcas, entidades que passaram por cá e não ficaram, revejo todos estes ciclos como círculos coloridos no céu estrelado, galáxias distantes que têm mais a ver comigo que esta consciência colectiva de antagonismos, rostos sem rosto, pessoas sem humanidade, humanidade sem pessoas, seres humanos que não chegam a lado nenhum mesmo que percorram a eternidade inteira.

Quando o sol se abre novamente rasgando o céu com a sua luz, a noite torna-se num dia lindo, de calor, onde os corpos pedem o contacto, hoje o casaco fica em casa e o café sabe melhor, e não são os olhares furtivos de alguém que pertence ao passado proibido, sentada num café às onze da manhã, que me tiram a sobriedade de enfrentar mais uma semana de criatividade e olhares intensos.



todos os textos e todas as fotos (c) joão amorim 2005